“Nota técnica” de membros do Ministério Público é do criador do Escola sem Partido

Renata Aquino

Atualizado pela última vez em 15/11/2018 às 18h

 

Ontem o professor Salomão Ximenes (UFABC) fez o seguinte post em seu perfil no Facebook:

A “NOTA TÉCNICA” É FRAUDE, É PLÁGIO
Circula a informação que mais de uma centena de promotores e procuradores teriam produzido uma “Nota Técnica” em favor da constitucionalidade do autodenominado “Escola sem Partido”. Tenho rebatido os argumentos de fundo e voltarei a fazê-lo, por ora quero alertar que a tal Nota é uma fraude! Não existe “Nota Técnica” mas a mera cópia do parecer jurídico produzido pelo advogado Miguel Nagib, idealizador e coordenador do movimento pró-censura. Fazem isso sem citar a fonte, ou seja, um estrondoso plágio (em sentido tecnico-científico) cujo efeito é encobrir o real autor do texto e a ligação servil dos signatários à agenda do movimento, que de neutro não tem nada. Nos comentários indico os dois textos, pra quem quiser assumir a fácil tarefa de compará-los.

A nota em questão foi divulgada pelo site Jota Info na sexta, 9 de novembro, sob a manchete “Mais de 110 membros do MP defendem constitucionalidade da Escola sem Partido“. A linha fina da manchete diz “Estudantes são lesados por professores militantes, afirmam procuradores e promotores em nota“.

O que Ximenes chama a atenção é que essa nota não foi feita por procuradores e promotores do Ministério Público, como a chamada alarma, mas por Miguel Nagib, que de fato é procurador — do estado de São Paulo, não do MP — mas é também o criador e presidente do movimento Escola sem Partido. Nagib já foi articulista do Instituto Millenium e disse que são os valores desse instituto que a escola deveria defender. Ele milita abertamente para que seus valores enquanto católico conservador sejam aqueles passados na escola, inclusive chegando ao ponto de que políticas públicas de combate à violência contra mulheres não devem passar pela educação mas sim se restringirem à TV (onde as pessoas podem mudar de canal). Impossível não pensar que essa nota não foi redigida por alguém que tinha o bem comum e uma educação de qualidade em mente, mas que na verdade está perseguindo seus objetivos políticos específicos.

O parecer de Nagib que os membros do Ministério Público dizem que é de sua autoria  foi publicado no site do movimento Escola sem Partido. A chamada dele diz: “Clique AQUI para ler o parecer sobre a constitucionalidade dos anteprojetos de lei estadual e municipal do Movimento Escola sem Partido, de autoria do advogado Miguel Nagib”. Atualmente o parecer ainda está na página inicial do site.

parecer
Print do site do ESP onde o parecer ainda está em destaque

O documento divulgado como “nota técnica” de membros do Ministério Público não traz qualquer indicativo de que não seja algo redigido por essas pessoas. De fato, o texto começa da seguinte forma:

Os membros do Ministério Público brasileiro que subscrevemos esta Nota Técnica, em defesa do Estado Democrático de Direito, expomos à sociedade a adequação fática e jurídica dos projetos de lei lastreados no anteprojeto Escola Sem Partido ao ordenamento jurídico, sobretudo à Constituição da República, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à Convenção Interamericana dos Direitos Humanos. (p. 1)

É explícita portanto a intenção de fazer parecer que o documento foi feito a várias mãos por membros de um órgão fundamental do Estado brasileiro. É, assim, flagrante a desonestidade e a tentativa de manipular a opinião pública brasileira dando ao texto do criador do Escola sem Partido a falsa autoria de pessoas cujos saberes possuem tanta legitimidade, ainda mais no atual contexto.

O documento é perpassado pelo ódio aos professores que o Escola sem Partido tanto se dedica a incentivar. A professora e o professor são os principais culpados pela doutrinação sistemática em todos os níveis (básico e superior): “Governo e burocracia do ensino podem até ajudar e ajudam, de fato, estimulando, facilitando ou sendo coniventes com a doutrinação , mas o agente do processo é o professor. Não existe doutrinação sem o professor doutrinador” (p. 2).

Sabemos que esse documento é na verdade de, no mínimo, março desse ano. Assim, ao vermos ele agora ser plagiado por membros do MP conseguimos entender como foi possível a enorme perseguição que as universidades públicas sofreram poucas semanas atrás, na medida em que tal censura é incentivada por grupos antidemocráticos como o Escola sem Partido com o apoio de agentes públicos como os que assinam o documento:

38. Cabe notar, ainda, que a doutrinação ideológica e a propaganda política e partidária nas escolas e universidades constituem uma fraude e uma ameaça inequívocas ao regime democrático, na medida em que se valem do sistema público de ensino para desequilibrar o jogo político em favor de determinados competidores. Escusado dizer que a notória intensificação da propaganda político-partidária dentro das instituições de ensino nos meses que antecedem as eleições passa inteiramente ao largo do radar da Justiça Eleitoral. Assim, ao aprovar o Programa Escola sem Partido, Estados e Municípios atuam decididamente no sentido de zelar pela guarda das instituições democráticas, como prescreve o artigo 23, I, da Constituição. (p. 14)

Comparando os dois documentos para confirmar que são o mesmo foi curioso perceber que as principais diferenças, exceto um item que será analisado mais a frente e as formalidades ao início e ao final da nota, aparecem nesse item aqui:

67. Evidentemente, os projetos só poderiam ser acusados de impor uma restrição
desproporcional
aos direitos dos professores ‒ como pretendem alguns ‒, se os professores tivessem aqueles hipotéticos e monstruosos direitos. Mas é claro que eles não os têm, nunca tiveram e jamais poderão vir a tê-los. Pelo menos, enquanto o Brasil não se configurar a distopia “orwelliana”.

Nesse momento do texto se fala de todos os direitos “tirânicos” que professores supostamente não possuem em sala de aula. Seja lá quem for que fez as mudanças no documento para apresentá-lo como de autoria dos membros que o subscrevem achou interessante aumentar o tom dramático dessa parte: as partes em negrito não estão presentes no documento original de Miguel Nagib.

Acho incrivelmente triste algumas citações a George Orwell.

E aproveitando que nos aproximamos de uma atmosfera distópica, somente a categoria de distopia me vem à cabeça para comentar um outro ponto do documento, que se mantém da mesma forma tanto no documento original de Nagib quanto no dos membros do MP. É o item 72, onde se cita o ridículo livro Professor não é educador, de Armindo Moreira.

72. Além disso, como observa Armindo Moreira, (5)


Um aluno, até seus 15 anos, terá tido, no mínimo, 20 professores. Entre esses, é
natural que surjam: religiosos e ateus; fanáticos, moderados e indiferentes
para com Deus e para com a Pátria; preguiçosos e trabalhadores; competentes
e incompetentes; castos, desregrados e homossexuais; sóbrios e viciados;
disciplinados e revoltados. Será que um ser humano pode ser educado (6)
por uma
turma tão contrastante e contraditória em hábitos e convicções? É evidente que
não! (…) Se os professores quiserem influir na formação moral e cívica dos
alunos, terão de o fazer com suas virtudes e com seus defeitos e na
consciência do educando ficará um feixe de contradições, um caos.

Como a gente responde a isso, gente? “Bem vindos ao mundo. A vida é difícil assim mesmo”. “Perdão pelo inconveniente”, como diz o deus de Douglas Adams lá nos livros do Guia do mochileiro nas galáxias.

É difícil lidar com todos os problemas desse trecho. Primeiramente, a homofobia e o ódio gritantes na sequência onde homossexuais são encaixados e tratados como outros. Segundo, na sequência do documento esse trecho serve para concretizar a inversão que ele busca fazer em todo seu conteúdo: a sociedade não é um todo plural, heterogêneo, diverso; ela é um grupo de famílias. É uma versão tupiniquim da famosa frase da Thatcher, “não existe sociedade”, onde se diz que só as famílias existem.

Nunca cansamos de dizer também que é no seio familiar, esse paraíso romântico da liberdade que o Escola sem Partido pinta, que crianças e jovens são mais violentados. Não é na escola, na rua, seja lá onde for: é em casa. Por conhecidos e inclusive por familiares. Resta óbvio o quão cínica é a suposta defesa que esse grupo faz da integridade de crianças e jovens. Onde se lê “família” nos materiais deles, temos que traduzir para “macho branco cristão ressentido”.

No mais, é algo impossível, desinformado e desonesto. A educação do ser humano nunca termina. Inclusive, é a partir desse caráter contínuo que Paulo Freire dizia que surge a preocupação ética da educação — isso mesmo, o doutrinador-mor falava em ética lá no querido Pedagogia da autonomia. Nos educamos sempre e em todos os espaços. Isso decorre de sermos simplesmente humanos. A dimensão educacional e axiológica disso obviamente está presente também na escola. Não tem problema nisso. O que temos de fazer é a partir dessas constatações debatermos que sociedade queremos e que escola queremos. O Escola sem Partido nega a humanidade de alunas e alunos e daí defende um projeto autoritário de negação da dimensão comum das nossas vidas em sociedade, dimensão essa que é a mais fundamental para construirmos regimes democráticos.

O documento, em mais um item igual ao parecer de Nagib, também defende com todas as letras o clima de perseguição e denuncismo nas salas de aula ao sugerir que os professores também gravem suas aulas para se protegerem (!!):

94. Mentem e [no original é “Afirma-se”] que os deveres previstos nos projetos de lei são vagos, criando situação de insegurança jurídica para os professores. Não é verdade. O caráter ilícito das condutas descritas é inequívoco. Mais que isso: a percepção de que se está diante de práticas abusivas é intuitiva. Seria obviamente impossível e incompatível com a exigência de abstração das regras jurídicas em geral, enumerar de forma pormenorizada as infinitas ações capazes de afrontar os princípios e garantias constitucionais que embasam o Programa. Em caso de dúvida sobre a licitude de determinada abordagem em sala de aula, o professor deve agir com redobrada prudência para não violar os direitos dos seus alunos. Afinal, prudência é o mínimo que se espera dos profissionais que têm sob sua guarda e autoridade indivíduos vulneráveis em processo de formação. Em todo caso, nada impede um professor de gravar suas aulas para se precaver contra acusações infundadas. (9)

9 [nota de pé de página]: Um arquivo MP3 com uma taxa de compressão 128Kbs (qualidade próxima à de um CD) ocupa aproximadamente 0,92Mb/ min. Logo, um HD externo de 1Tb (com custo aproximado de R$ 250,00) tem capacidade para arquivar mais de 21 mil aulas de 50 minutos. (p. 24)

O documento que saiu com o título de “nota técnica” assinado por membros do Ministério Público tem um item que não tem no documento original, o de número 95. Seja lá quem foi que o redigiu achou por bem acrescentar:

95. Mentem que a proposta impede a promoção da tolerância e o combate ao preconceito dentro das escolas. Falso. O que ela não permite ‒ pois a Constituição não o permite ‒ é que esses objetivos sejam perseguidos por meio de práticas que ofendem a dignidade da pessoa humana, a liberdade de consciência e de crença, a liberdade de aprender e o pluralismo de ideias; ou, ainda, em prejuízo da laicidade do Estado e do direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos: o que ocorre quando, em nome da “tolerância” e do combate ao “preconceito”, escolas e universidades são usadas para a promoção de agendas ideológicas e modelos de comportamento incompatíveis com moralidade dessa ou daquela religião ou quando as convicções morais e religiosas dos estudantes e seus pais são desqualificadas, desrespeitadas e estigmatizadas no ambiente escolar. (p. 24)

A nota termina com o que soa como mais uma afirmação, que agora sabe-se falsa, de que foram os membros do Ministério Público subscritos que redigiram o documento: “Posto isso, afirmamos à sociedade que os projetos de lei baseados no anteprojeto do Escola sem Partido são constitucionais, estão de acordo com o Estado Democrático de Direito. Inconstitucional, por outro lado, é o uso ideológico, político e partidário do sistema de ensino; inconstitucionais são as práticas combatidas pelos referidos projetos“.

Resta claro que divulgar essa nota sem os devidos créditos de autoria foi uma estratégia política desonesta para aumentar a aceitação de um texto que se se dissesse a verdade geraria efeitos de sentido muito diferentes.

Por volta das 18h dessa quinta-feira, dia 15, saiu uma manifestação de Miguel Nagib na página oficial do Escola sem Partido no Facebook. Fico feliz de ver que Nagib tenha compreendido a importância dessas coisas acontecerem às claras de fato, apesar disso ter acontecido somente após termos provocado. No entanto, parece que ele não percebeu o problema em jogo:

(…) Nesse meio tempo, porém, um grupo de Promotores de Justiça e Procuradores da República, compreendendo a importância do tema e sua pertinência ao Estado Democrático de Direito, decidiu elaborar e publicar Nota Técnica baseada no referido parecer, em apoio aos projetos de lei baseados no programa da Escola Sem Partido. Tudo foi feito às claras e, evidentemente, com o meu total conhecimento e concordância.

Tanto o meu parecer quanto a Nota Técnica consubstanciam peças jurídicas de domínio público, pelo que é evidente que não se pode falar em plágio. (…)

Ninguém em sã consciência pode afirmar que o parecer de Nagib disponível no site do movimento é tão conhecido quanto algo que sai assinado por “membros do Ministério Público”. A ética e a responsabilidade política deveriam ter obrigado os articuladores dessa “nota técnica” a deixar claro as origens desse texto. Uma coisa é se eles o tivessem redigido do início ao fim; outra coisa, bem diferente, é que ele seja uma reprodução exata de um texto do maior interessado na aprovação do Escola sem Partido.

Não houve nada “às claras”, já que somente ao ser provocado realmente se publicizou de onde o texto vem. Não importa se o autor original permitiu ou não, porque quando falamos de um documento endereçado ao debate público qualquer omissão de informação prejudica o público maior desse texto, qual seja, a sociedade civil legitimamente interessada em conhecer essas ideias e que será afetada por elas caso virem leis no país.

5 comentários

  1. Republicou isso em Blog do Paulo Carranoe comentado:
    A perseguição aos professores pelo grupo ideológico Escola sem Partido é feita através da criação do pânico moral que inventa os “professores doutrinadores”. Agora os ideólogos se superam com a utilização de plágio e simulação de documento de pretensa autoria coletiva de membros do MP. Leia o artigo de Renata Aquino.

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  2. Sobre a Escola,
    Intimidação, não é bullying, é agressão!

    A “universidade” é célula da sociedade, não deveria e não está num casulo. Nem em outro planeta. Há evidentemente os mesmos problemas dentro das universidades. Há intimidações de quase todo tipo, entre professores, técnico-administrativos e discentes. Não é reflexo, é a verdadeira sociedade brasileira!
    Com o PT e seus seguidores nós passamos mais de 30 anos interrompendo as aulas arrancando, retirando ou convencendo com “argumentos de cátedra” os professores e os alunos! Paralisando as aulas com piquetes, panelaços, carros som, foguetes! Fechamento de escolas, portões, ruas e estradas!
    Mais recentemente o reitor da Ufpa com vínculo ao sindicato de professores Proifes-PT, EM CRIME ELEITORAL, paralisou as aulas e outras atividades em apoio AO CANDIDATO DO PT! O campus e em especial o hall da reitoria tornou-se um canteiro de oficinas de propagandas com projeções para além do campus!
    Foi assim que se deu na pratica o arrebanhamento do que lembrou a JUVENTUDE HITLERISTA! Que vergonha!
    Jantar para o “dia dos professores” transformado em palanque do PT! Quando manifestei “fora Lula” vários professores vieram em minha direção contestando minha manifestação de reação contrária, como se todos só tivessem direito a torcer por um único time!
    A Demagogocracia da “maioria” do DCE-Associação de Professores que SEMPRE alardeavam-se apartidárias, impõe com intimidações, aumentando muito neste período de votação, atos de intolerância, e perseguição ideológica!
    Em universidades, a associação de professores-PT-PSOL-PCdoB-CUT e o reitor trabalharam deliberadamente e sistematicamente em todo período eleitoral no interior do campus em panfletagem e pseudos seminários junto aos discentes!
    Na universidade o campus funciona como se fosse sede de um partido particular, não há pluralidade de partidos. O campus funciona como uma embaixada!
    Com o intuito de conduzir uma comunidade ou categoria para o “bem” e minimizar suas perdas, as nossas greves em mais de 30 anos sempre prejudicaram direta ou indiretamente outros segmentos da sociedade!
    Clamávamos por justiça e descontávamos nos outros segmentos da sociedade!
    Nunca pedimos desculpas, nunca pedimos perdão, e quem irá compensar este gigantesco segmento da sociedade que sempre ficou desamparado por uma omissa e covarde justiça! QUEM GRITA, BADERNA E FAZ ARRUAÇA É QUE TEM LIBERDADE-DE-CÁTEDRA!
    Não há tempo para argumentos e a isto, reitores, juristas, professores-doutores chamam de uNIVERSIDADE?
    É evidente que num desequilíbrio de forças o domínio do espaço público por partidos-privados descaracteriza a própria universidade e, portanto, a própria sociedade!
    Então, até onde deveria ir o que poeríamos chamar de autonomia universitária e liberdade acadêmica? Não sabemos respeitar argumentação e contra-argumentação!
    Lei eleitoral nas escolas e repartições é claramente para evitar assédio! Principalmente neste período de eleição nós não nos respeitamos e para evitar um mal maior nós temos que bancar como sempre um grande covardão! Diante de nossos alunos, filhos e colegas.
    O STF E TSE TRANSFORMAM EM MOLEQUES TODOS OS TRIBUNAIS AO BURLAR ARDILOSAMENTE AS LEIS ELEITORAIS CLARAMENTE TUTORADOS POR GLOBO E RENITENTES! REGRAS DO JOGO-DE-FORÇAS MODIFICADAS ARDILOSAMENTE NO FINAL DO JOGO!

    AUTONOMIA NÃO É BLINDAGEM!
    Atenciosamente,
    P.S. Nós carregamos a bandeira do PT por 24 anos!

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